27 de jan. de 2011

Um Sonho

Os objetos eram tortuosos, engraçados, pareciam todos feitos de massa de modelar. Lá em cima, uma nuvem vagava sozinha em um branco macio e sereno, olhando com carinho tudo aquilo que estava pintado na paisagem lá embaixo. O chão era de um verde irritante, diminuia os olhos e também os fazia brilhar mais, abrigar lágrimas, quase fechar. Talvez fosse grama, ou talvez não fosse nada, só chão (...) E a nuvem dançava no céu, flertava o Sol, e não ia embora de jeito nenhum. Tentei pegar algo do chão, reconhecer meu piso, um objeto, um relógio talvez. E nada consegui tocar. Não podia enchergar meus pés. Na verdade não podia enchergar nada que o corpo humano carrega. Era como se os meus olhos flutuassem naquele verde e então eu não podia tocar os objetos, não podia sentir o chão, nem sorrir para todas aquelas cores e formas. (...) Eu sabia que meus olhos brilhavam. Chegava a me doer, incomodar, de tanto que brilhavam. Brilhavam como se jamais fossem enchergar coisa assim. E eu sentia imensa vontade de sorrir, então eu sorria com os olhos e os cansava ainda mais. Doia. (...) A paisagem não mudava suas cores, nem alterava qualquer forma, por mais que tudo ali parecesse mole e engraçado. Então eu senti que me observavam, que alguém ali tinha vida, mais vida e me olhava. Olhava os meus olhos. Não via nenhuma forma humana, nem animal. Mas a sensação de que alguém me observava era forte, grosseira, me intimidava deveras. Achei que talvez fosse hora de ir embora, fugir antes que fosse apanhada por quem sabe, algo que não fosse engraçado. Tentei, mas foi inútil. Percebi que eu estava presa ali, que nem o meu querer era suficiente para que eu avançasse. Era preciso que o tempo passasse para seguir. Eu podia estar com medo, entediada, feliz, perturbada... Nada do que eu sentisse, nada do que os meus olhos contemplassem podiam me mover no tempo. Só o tempo. Aquela doce cofusão, era a minha vida. Os objetos, minhas lembranças. Algumas grandes, outras mínimas, tortas, malucas, engraçados e tristes. Aquele chão, o meu mundo. Meu mundo deslumbrante. E a nuvem solitária, ah a minha nuvem solitária... Era o amor, se fazendo de doce, macio, só esperando pra chover em mim e causar uma enorme tempestade.

20 de out. de 2010

(...)

Eu fiquei um tempo sentada na escada esperando que a Lua caísse na minha cabeça e me matasse de uma vez. Ela estava lá, toda arrumada, brilhando pra mim como quem não quer nada, me fazendo redescobrir algumas coisas boas, que fodem a vida em oportunidades frágeis e por isso dão medo. Um medo da porra. Olhar assim pro céu, no meio da semana, pensar no céu, pensar O Céu, sonhar acordada, relembrar, tudo isso é tão anormal agora. Talvez por isso eu realmente precise dessa dose de noite, de Lua cheia, de brisa, cerveja no copo, latidos de fundo. Preciso ser nostalgica, porque eu sempre guardei isso em mim e não quero perder meu Eu Clichê. Sou assim e gosto disso. Como posso deixar que hábitos tão vitais sejam atropelados por preoupações sem fundamento e outras com fundamentos, mas ainda assim preocupações e não fatos? E os fatos? Deixe que os fatos continuem sugando o meu sangue aos poucos, me deixando carente, frágil, sensível, com a força esgotada. Porque eu sei que todo mundo está morrendo de tristeza, com vergonha do mundo, se agarrando em qualquer ponta de amor, por mais vagabundo que seja. Eu sei que todo mundo está no mesmo barco que eu e se tiver alguém que diga não, dou a noite de presente, com direito a Lua cheia e vento fresco.

6 de set. de 2010

Un Capriccio de la Verdad

Na última semana de agosto, fui cair nas graças de mi Buenos Aires querido, aquele da linda canção de Carlos Gardel. Sai do Brasil fugindo de mim, arrastando uma mala com duzentas toneladas de dor. Adiantei o voo e consegui chegar ainda de dia. Em um frio e iluminado dia. Escorreguei tarde à dentro, ainda fugindo, no ônibus número 8, que levou duas horas para me arremessar à 9 de Julio e seus 140 metros de largura. Desci, na verdade, em um ponto da escura Avenida Hipólito Yrigoyen e logo que dei meus primeiros passos ouvi da esquina duas senhoras me dizendo Hola. Dali até à 9 de Julio, alguns homens de meia idade com cara de bolivianos me saudaram também, com ares de malícia. Fugi deles, fugi da escuridão da Avenida Hipólito e continuei fugindo de mim. Fui parar em um bar da apaixonante Avenida de Mayo, ali na altura do número 1200 e mandei descer uma Stella Artois bem gelada para a minha mesa. Escureci com Buenos Aires. Paguei com os primeiros pesos que eu havia trocado no aeroporto Ezeiza e lá se foram 10 deles. Segui para o Hostel Milhouse Avenue, mas antes de entrar, esperei para ver a cara de alguém que já estivesse lá dentro. A porta não demorou a abrir e sairam cinco garotos brancos, falantes, americanos com certeza. Entrei. Quieres que hable en inglés o espanõl? - o recepcionista me perguntou. Portunhol! - respondi. E sorrimos. As sete noites que dormi em Buenos Aires foram na cama de cima de uma das três beliches do quarto de meninas. Noites boas e outras nem tanto. Às vezes eu tossia, às vezes pensava demais e não conseguia dormir, às vezes eu dormia e tinha sonhos malucos, mas dormindo bem ou mal, eu sempre acordava com aquela paisagem seca e cinza da Avenida de Mayo. Não devia ser, mas era e na minha memória continua sendo, linda. Ali eu caminhava todos os dias antes de me aventurar no trânsito estúpido de Buenos Aires. Andava bem devagar, olhando com cuidado cada detalhe dos prédios, dos restaurantes, das pessoas que andavam mais rápido do que eu. Era sempre a mesma coisa: Com licença! Gracias! E a pessoa seguia apressada. Em uma tarde de terça-feira, minha caminhada me levou a Plaza de Mayo. Aconheguei minha curiosidade em um canto e fiquei de longe observando algumas crianças jogando futebol. Os rivais mais encantadoresdo mundo! Às vezes a bola caia perto de mim e eu chutava de volta, torto, mas chegava, sem abrir a boca. Fiquei imaginando o que eles diriam se me ouvissem falar em português. Imaginei uma discussão sobre quem era o melhor jogador do mundo e quando a noite começou a pintar o céu de preto eu fui pintar o meu sono na beliche de cima do quartinho do hostel. Nos demais dias conheci a rua Florida e suas lojas, troquei o passeio no Zoo por uma volta no cemitério da Recoleta (onde está sepultada Evita Perón), tirei uma foto do Obelisco, me emocionei diante da Casa Rosada e mandei postais que nunca chegaram. Meu último passeio foi em La Boca, onde conheci o estádio La Bombonera. Ali os fanáticos fazem milagre não caindo uns sobre os outros, enlouquecidos de paixão, pulando dentro de uma caixinha de bombom amarela e azul. Me despedi da Argentina em uma gélida manhã de sábado e pousei no Brasil em uma tarde suada de setembro. Desfiz minha mala de dor e descobri que mesmo fugindo, em Buenos Aires eu estava me encontrando, para a minha felicidade.

8 de fev. de 2010

Bucuresti Capricios

Foi lá pelo mês de agosto, quando Bucareste chegou aos seus 35 °C em uma tarde lavada de sol, que desembarquei em Henri Coanda. O meu amigo Arsenie já estava me esperando com uma caixa nas mãos e um sorriso bem largo no rosto. Há alguns meses conversávamos pela Internet e ele me contava o quão encantadora era a "Pequena Paris" onde morava desde bebê, quando a mãe brasileira casou-se com um cara romeno bem de vida. "Frumoasa Mea!" ele gritou! Corri para abraçá-lo e quase o fiz derrubar a caixinha que trazia nas mãos. Nos olhamos por alguns minutos, risonhos, felizes, bobos pra ser bem sincera. Eu estava ali, ouvindo o meu amigo me chamando de "minha linda" naquele idioma tão bonito. E ele também era tão bonito (!). Foi como um sonho bem caprichado e talvez realmente fosse.
Saímos do aeroporto em chamas, contentes por estarmos ali, juntos. O ônibus 783 chegou em menos de quinze minutos e lá fomos os dois, com os olhos ainda brilhantes, rumo ao doce que era a capital. No caminho, Arsenie me deu a caixinha que comentei nas primeiras linhas. Estava recheada de chocolates e tinha as cores da bandeira da Romênia, era pintada a mão e escondia um fundo falso pra guardar algum segredo. Nos deliciamos durante os sessenta minutos de viagem e quase não sobrou espaço para a farinha de milho com queijo que a mãe do Arsenie fez para a minha chegada. Seu nome, Regina. Era bonita, morena, nova e perfumada. Um amor de pessoa, brasileira como ela só, ficou o tempo todo me fazendo perguntas: "E a violência? Diminuiu?", "A Dercy ainda não morreu?" "Eu tenho saudades de Ubatuba, acredita?" E ria.
Ficamos muito pouco dentro de casa, apesar de ser uma grande e adorável casa. Arsenie queria me mostrar de tudo um pouco e eu também queria ver. Lembro-me da primeira noite em Bucareste, quando ainda no taxi começamos uma festa ao som de Dragostea Din Tei e Despre Tine, as duas únicas músicas que eu sabia cantar em romeno. Fomos ao Krisal Glam Club, um lugar com boa música e gente boa. Muito parecido com um bar que frequentei ano passado e que hoje está fechado, infelizmente.
Passei quase quinze dias na "Paris" do meu amigo Arsenie e saboreei cada pedacinho daquele sudeste abafado. Fomos ao teatro, alugamos uns filmes do tempo do Edward G. Robinson, fizemos piquenique e ainda tivemos tempo de ler poesias à beira do Rio Dâmbovita, lindos. Mas havia chegado a hora de ir embora. A despedida foi como toda despedida, inevitavelmente triste. Tive vontade de jogar o Arsenie dentro da minha mala (que não era pequena) e trazê-lo comigo para São Paulo. Mas fiquei imaginando a dona Regina louca de saudades do filho bonito e educado que ela teve e achei que seria justo apenas convidá-lo para passar as férias de inverno aqui pro lado de cá.

Ele aceitou o meu convite mas nunca apareceu. E até hoje eu não sei o que guardar no fundo falso da minha caixinha romena...

17 de set. de 2009

Luz, sem câmera

Minhas dezoito primaveras dariam uma comédia romântica dramática, cheia de ficção e sustos em determinadas cenas da adolescência. O roteiro da minha vida é um mix de todos os gêneros, com trilha sonora de todos os estilos. Tenho em minha história mil personagens, reais e imaginários, importantes e descartáveis. Os de maior destaque são aqueles que eu não canso de admirar. Eles entram em cena quando o cotidiano se torna uma tortura, quando respirar ar natural passa a ser venenoso e é preciso apelar para o lado mais piegas da vida, o clichê de ser salva pelo remédio do amor. As cenas dos beijos, abraços e sorrisos brancos, as melhores de todo o cinema, são sempre as que o diretor corta mais depressa. E até agora não pensei em nada inteligente para escrever a respeito do diretor do movie of my life. Mas deixemo-no de lado por hora (ou pro resto do texto) e vamos aos figurantes, que não são tão especiais quanto os outros personagens, mas são igualmente importantes no decorrer de toda história. Esses levam o sentido de preencher determinado espaço. Mas o mais interessante é que mesmo não despertando sentimentos nem emoções, mesmo na maioria das vezes não sendo visivelmente notados ou sentidos, eles existem, e sabe lá Deus porque, às vezes possuem mais falas e ações no filme do que eu.

17 de jul. de 2009

As Poderosas Rainhas

Antes de qualquer coisa, peço que não considerem esse texto uma resenha. Eu nunca escrevi uma por vontade, apesar de já ter lido ótimos livros. Não sei fazer resenhas e acho esse termo um tanto esquisito. Mas hoje o post é sobre um romance que conheci por acaso e me apaixonei a primeira linha. Durante as últimas semanas, além de ter dedicado os meus dias ao trabalho, a família e ao amor, dediquei também algumas horas antes de dormir As Poderosas Rainhas, um livro que me despertou sentimentos, ideias e aflorou como nenhum outro a minha esquecida feminilidade. Até então eu e a minha ignorância jamais tínhamos ouvido falar em Amy Dickinson. Me assustei quando descobri que a autora do meu doce amante é uma jornalista importantíssima dos Estados Unidos, lida por milhões de pessoas no país e no mundo. Ora, como eu saberia? Não sei, mas me senti envergonhada por tê-la conhecido tão tarde. As Poderosas Rainhas não pode ser resumido. Seria um pecado transformá-lo em um rascunho ou simplesmente ignorá-lo. O livro conta uma história de vida, a história da própria Amy Dickinson. Da infância na fazenda ao divórcio repentino. Do abandono do pai à criação de sua filha. É como estar vivendo as lembranças de Amy em tempo real. Visualizando Freeville, o seu eterno lar em detalhes. Esperando ansiosamente pelas surpresas do familiar natal americano. Imaginando o passar das estações, o movimento da vida, dos acontecimentos e da paisagem descrita por ela. "Erro para que vocês não tenham que errar também." Esse é o lema de Amy Dickinson, que agora é para mim um espelho. O exemplo de que é possível superar os problemas (principalmente os que são exclusivamente nossos, meninas) sem borrar a maquiagem. ;)

Para saber mais sobre o livro, ver fotos, vídeos ou ler alguns capítulos, acesse o site: http://www.aspoderosasrainhas.com.br/

19 de jun. de 2009

Dias neutros

O vento da chuva está assoprando a minha nuca. Eu me sinto arrepiar por alguns segundos desconcertantes e logo me vem um rosto conhecido nos olhos da mente. Apago as luzes para obter o efeito que mais me fascina em dias neutros como o de hoje. A escuridão do quarto é efêmera. O brilho das luzes vizinhas se apressam em iluminar os pequenos espaços da mesa. Fazem fileiras, fazem festa e se misturam. Mas a festa das pequenas luzes não resiste a melancolia da escuridão e logo todo aquele brilho descansa. Eu adoro esse momento. Sinto os ruídos da rua serem abafados pela minha respiração. Os meus pés não parecem mais tão frios e nem as minhas mãos, que agora estão mais brancas do que quando iluminadas por lâmpadas. Ideias que antes eram tão quentes, esfriam e perdem a consciência. A garganta, que leva sufoco e quase morre doída, coitada, consegue finalmente engolir saliva. Nem o cheiro da fumaça que vem de fora incomoda, apesar dos três espirros que inevitavelmente me escapam. Agora não estou mais vivendo um dia neutro, a noite me salvou. Mas posso falar deles se quiser, ou se eu mesma achar que devo. Eles começam tarde, ainda bem, depois do meio-dia. O sol já está amolecendo a vida lá fora e a minha, que ainda nem bem acordou, também se derrete tarde a dentro. A inquietação que se apodera de mim seria bem-vinda se conseguisse vencer o tédio. Mas a cama me chama, o livro que ganhei de uma desconhecida também. Em poucos minutos estou longe da história, com os olhos vagando na órbita, sem esperança, sem força, sem vida. É um dos momentos mais difíceis do dia, que parece não deixar que as horas passem como deve ser. Eu desejo que a Lua venha, mesmo que escondida entre algumas nuvens pretas. E só quando o quarto se pinta de alaranjado, sinto que valeu a pena ter passado por tudo aquilo. Dias neutros são sofridos, mas existem dias piores, por isso os considero neutros. Não acrescentam nada, nem me tiram valor algum. Não me fazem crescer como humana que sou, nem me diminuem a um ser estranhamente evoluído. Esses são os meus dias neutros. E hoje, por muito pouco, não me deixo dormir convicta de que havia tido um dia assim. Até escrevi isso no início dessas linhas. Peço desculpas, menti. Mas encerro esse pensamento corrigindo o meu deslize e afirmando com notável alegria que a noite ainda não se esqueceu de mim.

16 de jun. de 2009

Metrô

Era um feriado de plástico, desses que a gente descarta o significado pra se aproveitar da existência e das oportunidades que temos graças a eles. Naquele dia eu tive a chance de namorar a estação do metrô. Beijei os detalhes arquitetônicos com os meus olhos, que bem poderiam ser da mesma cor que as luzes que iluminam a plataforma. Respirei profundamente aquele ar, como se nunca mais fosse respirar. E de certa forma, jamais voltei a senti-lo tão livre de perfumes e suor. Sentei-me na cadeira azul reservada para os obesos, mas que aconchega os casais que querem estar mais próximos. A ausência da pressa me sensibiliza um pouco. Em dias comuns, entraria no primeiro metrô que aparecesse. Cheio ou vazio, do modelo novo ou velho. Não teria tempo nem de observar as pessoas, só de sentir o calor que elas me passam quando estão inevitavelmente perto uma das outras. Em dias comuns, os sentidos são castigados. As mãos não tem saída: são obrigadas a tatear o que não precisariam. Os olhos, mesmo fechados, ainda conseguem enxergar. Os ouvidos são surrados pelas notas, pelas vozes e pelas conversas paralelas. E o nariz, sufocado de odor, só não faz respirar. Mas nos feriados de plástico é tudo bem diferente. Naquele dia, deixei passar alguns metrôs pela plataforma até finalmente embarcar. O ar resfriado arrepiou-me, escolhi novamente a cadeira azul. O metrô partiu em um disparo e pela primeira vez consegui ouvir o som que ele provoca sob os trilhos. (...) Ao contrário dos dias comuns de contagioso estresse, a estação seguinte chegou demasiadamente depressa e algumas pessoas entraram. Entre elas, um rapaz de olhos e cabelos negros, pele morena e uma elegante harmonia entre a estatura e sua posição diante de mim. Estava perto demais para que eu me deixasse olhar por mais de cinco segundos. Mas os meus olhos castigados precisavam daquela liberdade. (...) O rapaz talvez sentisse a mesma necessidade. Tentou disfarçar que a janela daquela alma desconhecida não sentia o mesmo interesse, mas assim como eu, não conseguiu por muito tempo e voltou a olhar-me de frente. Entre o flerte, o som do metrô e as pessoas que entravam e saiam do vagão, uma voz mecânica anunciava as estações que se aproximavam. Deus, como quis que meu destino demorasse como nos dias comuns! Por um momento quis que fosse uma segunda-feira insana e eu não tivesse como escapar dali. Quis que entre nós não existisse vazio, mas pessoas para nos empurrar em direções idênticas. Cheguei a esquecer por completo que estava acordada, que tinha um destino e pessoas a minha espera. (...) O rapaz começou a caminhar. Atravessou o pequeno vazio que nos separava e sentou-se ao meu lado. Estávamos como os casais que citei ainda a pouco, ocupando os assentos reservados por capricho ou involuntária vontade de estar mais perto. Senti o meu coração esquentar, apesar do frio artificial. Minha mente agora estava em completa desordem, muito pensamento pra pouco tempo e espaço. Quis abrir a boca e bocejar, em sinal de completa indiferença, mas as aulas de teatro que cancelei nas vésperas do início me fizeram a falta maior. Não consegui disfarçar, não consegui acalmar minha respiração, tampouco olhar para o lado oposto do meu parceiro de assento. O que eu poderia fazer? Dar um assunto a aquela oportunidade e correr o risco de congelar ainda mais o oxigênio? Mudar de lugar e despertar as ideias que ainda não foram acesas? Por que ele não bocejava? Por que não me perguntava a hora ou me entregava em uma bandeja de prata qualquer desculpa mal pensada? Comecei a construir um castelo de suposições, que veio abaixo tão mecanicamente quanto a voz que calou o já silencioso impulso. "Próxima estação Sumaré." (...) Nossa respiração perdeu a sincronia. O rapaz deu um suspiro de leve e levantou-se. As portas do vagão se abriram e depois do último olhar trocado, deixou comigo um sorriso que escapou meio sem graça. Nunca mais voltei a vê-lo.